quarta-feira, 9 de maio de 2018

Um CD qualquer acabara de tocar a sua última faixa, estavamos no carro e estava a chover, a conversa ocasional sobre a vida em geral e o seu significado entoavam a estrutura contígua do carro, trancado, naquela noite de dia de semana no parque de estacionamento do Mc'Donalds do Restelo, local que sempre escolhemos para ele jantar depois das aulas e para ficarmos a conversar sem tema redundante. De repente, as notas músicais do CD que se seguiu inundaram o ambiente, preenchendo o vazio. A noite envolvia-nos e eu envolvida no meu casaco polar tentava manter-me quente. Fechei os olhos e calei-me, ele percebeu que aquela música me deixou prazerosamente nostálgica, acho que também ele se sentiu assim porque não dissemos nada durante algum tempo. Conseguia ouvir as gotas da chuva a bater no pára-brisas e nos vidros das portas laterais do carro e vê-la escorrer com alguma ferocidade pelo translúcido daquela parede invísivel. Deixei cair tudo ali, deixei cair a guarda e decidi agarrar-me à tristeza de uma forma que ele nunca tinha visto. Falámos sobre Deus. Deixei cair o banco para trás e deitei-me, ficando a fitar o teto de feltro negro, sem tejadilho. Ele, por sua vez, desceu também o banco e ficou em silêncio a olhar para mim, perdida no feltro no lugar do não existente tejadilho. Levantou a mão e fez escorregar a ponta do indicador suavemente desde a minha testa até à ponta da cana do meu nariz, fez um desvio e tocou com a mão na minha bochecha e deixou-se estar a fazer-me festas no silêncio melódico do CD que entoava a atmosfera. Deixei-o estar, ainda que parte de mim estivesse a resistir contra aquele gesto, deixei-o afagar-me o rosto, deixei-o tentar apagar o vazio que sentia, deixei-o confortar a minha alma durante uns breves minutos sem resistir. Não quis chorar, mas se estivesse sozinha tê-lo-ia feito. Quando o gesto escalou e se transformou num doce beijo na minha maçã do rosto, fiz o meu papel e afastei-o, como sempre faço.

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