Eu tenho uma peça danificada. Vi-a estragar-se – a peça – e tomei
como liberdade guardá-la num compartimento embutido no meu armário de
arrumações, naquela tal última prateleira.
Já subi várias vezes o escadote e cada vez que lá vou a cima
e dou com a peça, sinto que o dano da peça prejudica o meu funcionamento “normal”.
Ao mesmo tempo, cada vez que tento entender o dano, sinto-me
mais esclarecida relativamente ao modo como ele me prejudica, apesar de não
saber a sua fonte. E a perceção da complexidade do estrago diminui com o tempo e
com o pensamento, tendo vindo a transformar-se num problema cada vez mais
presente, mas cada vez mais claro. Podendo agora eu dar-lhe uma definição sem
que haja ainda uma denominação simples.
Eu tenho dependência à independência. Tenho também medo da
dependência e, mais medo tenho, de perder a independência.
Eu não me vejo, nem nunca vi, como um elemento que pertence
a uma comunidade, compreendendo-a (definição pessoal) como um conjunto de
pessoas que procuram a cedência de vontades e perda de percentagem dos
interesses, para que uma vontade apenas vigore, tendo como fim último o bem
comum de todos os elementos do conjunto (entre outras coisas importantes a
referir nesta definição).
Eu sou, porém, o elemento que não se mexe pela comunidade,
vivendo à margem dela. Não estabeleço compromissos e os que, raramente, estabeleço são de ordem facultativa e, pouco fiável é, confiar na minha presença
nesses mesmos eventos, mesmo que eu jure a pés juntos que estarei disponível
para comparecer. Eu não tenho disponibilidade para mais ninguém sem ser eu
mesma. A menos que estar disponível me leve a beneficiar de alguma maneira
daquele complô. Não tenho horários e não conheço marcações que não as minhas e,
acima de tudo, não faço cedências ou dou prioridade ao outro em detrimento de
mim mesma. E faço-o pelo simples prazer de mostrar que a Minha decisão é
soberana, que sou inflexível, para fincar o pé. Eu, Joana, dona e senhora do
meu próprio destino, ou seja, faço-o para embirrar, mesmo que saia prejudicada.
Eu não me envolvo com as pessoas na comunidade, nem mesmo a
cem porcento com os mais próximos (nunca a fundo). Não faço a vontade ao amigo
que ficou à espera no café, não faço a vontade ao amigo que quer que eu lhe
faça companhia numa festa, ao amigo que me quer apresentar pessoas importantes,
ao amigo que ainda assim promete vir buscar-me a casa, à família que tem
saudades de me ver. Não o faço. Não faço, porque sou egoísta. Não o faço porque
na verdade, mesmo não tendo toda a gente esta perceção de mim, eu sou fria e
calculista.
Mesmo que goste do outro e me
importe com ele, prefiro estar confortável, por não precisar dele – “Tu tens a
tua vida, eu tenho a minha. Podes envolver-te na minha vida, mas não esperes
que assuma qualquer tipo de compromisso contigo. É quem eu sou” – desculpo-me –
“Já não mudo.”
Marcar horas? É não ter
capacidade de improvisar, ser estático e não ter espontaneidade. Divertir-me e
ser feliz? É um direito reservado a amigos, mais ninguém tem direito à pessoa
que sou quando estou com eles, sem serem os próprios. Responder a mensagens? É
uma seca, uma prisão. As aventuras? São só minhas, não tenho desejo de
partilhá-las, a minha loucura ultrapassa todos os limites sem que eu veja,
porque estou feliz e ocupada e não olho aos estragos que provoco.
Sou só eu. É muito difícil deixar
alguém tomar conta de mim, até nas pequenas coisas. Quero fazer as coisas
sozinha. Sempre fui assim, mesmo que por vezes tenha de ser mais moldável, mais
líquida. E não sinto propriamente as consequências de tudo isto, porque se há
coisa que sei fazer é estar sozinha e não sentir solidão. Posso passar dias a
fio sem dizer nada a vivalma, posso estar sozinha tempos e tempos.
Mas e se estiver a perder partes
da vida que nunca serão do meu entendimento? E se estiver a fazer mal as
coisas? Terá a peça uma possível concertação? Será que procuro sequer esse
concerto? E qual será a fonte? O porquê de não querer saber do outro? Será esta
minha fraqueza fatídica?
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