Recosto-me no conforto da minha cama, no meio das trinta almofadas coloridas e peludas. Cada vez que olho para o acolchoado, aparece, vindo do nada, um novo travesseiro decorativo, nascendo como se fossem cogumelos e prometendo tornar as minhas noites aconchegantes (isto quando a minha inconsciência noturna não decide, por mero acaso, mandar todo o conjunto de almofadas bonitas e variadas para o meio do chão, em impulsos e espreguiçares espontâneos). Estiro os membros inferiores, despidos, ao longo do colchão grande e fofinho e a liberdade que a minha definição de pijama (apenas um top largo e curto cinzento descrito pelo tato da minha pele como macio e umas cuecas) me entrega, tráz-me bem-estar. Sinto-me bem nesta pele.
No conforto do meu próprio quarto, reparo no caderno de capa rígida e preta que se encontra à minha frente. Há uns dias que suspendi a escrita ao reparar que a última folha é a única que continua em branco. Falta-me uma página. Uma página de mais um caderno. E, inesperadamente, não sei o que escrever.
Vou dormir agora. Estou muito cansada hoje, preciso de recarregar energias e amanhã volto a este racíocinio.
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Ontem fui tomar café com o Rafa, julgo não saber o que pretende de mim. Gosto de tomar café com ele. Continua a dizer coisas sobre mim mesma como se me observasse e conhecesse, apesar de não conhecer realmente, porém tem uma ideia bastante parecida à realidade que tomo como a minha ideia. Disse-lhe há uns dias, quando tentou em vão combinar coisas comigo dois dias seguidos, que eu era uma "liability", não se podia contar comigo. Ele riu e disse que era o que me dava piada. Um "Já te disse que é isso mesmo que gosto em ti." surgiu, o que me deixa mais pensativa relativamente à natureza das suas intenções. Aborrece-me a ideia de ter de aturar outra pessoa. Isto faz de mim uma pessoa normal? O próprio Rafa me disse ontem: "Tu andas mortinha por sair daqui.". É. Ando.
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Hoje estou perdida. Na paixão do Verão. Em todo o lado o vejo, o procuro, o encontro sem o encontrar realmente. A imagem do cabelo comprido no topo, liso, castanho, brilhante e forte. Aquela popa que cai para o lado esquerdo da sua linha da testa com a sua tez morena. A expressão, os olhos, o sinal no olho, a argola pequena, o símbolo da sua personalidade alternativa, que parece destoar no seu feitio. Não penso nele na maior parte dos dias, já não sinto as coisas da mesma maneira e não o vejo há meses e sei que está com alguém, mas a Lala perguntou-me por ele ao telefone ontem, perguntou se me tem dito alguma coisa. Será fraqueza da minha parte admitir que quando voltei eu me perguntava relativamente ao estado em que as coisas tinham ficado entre nós? Quando ela falou dele o meu sorriso abriu e fiquei a pairar no ar durante breves segundos, como se tivesse voltado atrás no tempo. Procuro a sua imagem em todo o lado, nas parecenças que tem com outras pessoas na rua. É estranho dizer que não acredito que as coisas tenham ficado por aqui apenas? Que sei que o que aconteceu foi o destrancar de um janela que por enquanto está fechada. Eu nunca senti nada desta intensidade por ninguém. Era de me apetecer bater com a cabela na parede. "Eu sinto-me tão atraído por ti". Foi isso mesmo que eu senti. E hoje revivo aqueles momentos efémeros, na minha despedida quando o levei até ao parque de estacionamento, naquela altura em obras, nos beijamos na ponte sobre a linha do comboio (não que o cenário importasse realmente). Ou em Leiria, quando dormimos juntos no colchão da cama partida da Mariana, no soalho de madeira. Perco-me nos beijos dele nos meus dedos, na minha testa, nas coisas que me disse que fiz força para recordar, o que pude, pelo menos. Ainda não tinha tido coragem para escrever sobre ele desta maneira. O que nós fomos encontrar um no outro foi pura conexão química e física. Nunca me senti tão provocada e com tanta vontade de provocar ninguém. Nunca foi amor, isso não existe em mim com facilidade, não sei se foi paixão porque isso exige tempo também. Foi atração, aquela que me tira o fôlego.
A forma como tudo se desenvolveu foi surreal, reparei nele pela primeira vez no evento de final de curso, ele foi um participante de última hora, mas o primeiro da equipa a aparecer. Veio ter comigo porque eu estava a tratar das acreditações e provavelmente para me cumprimentar, já que era a única cara "conhecida" que ali estava, disse-me que era capaz de se ir embora mais cedo, mas acabou por gostar do evento e ficar. A Lacerda disse-me que ele era extremamente culto, já que estava a acertar em todas as respostas e foi aí. Acho que só reparou em mim realmente num dos cafés, ou talvez antes, porque ele sabia mais detalhes sobre mim que eu não sabia que ele prestava atenção. Como quando me perguntou como tinha sido a viagem a Macau, quando o apanhei a olhar para mim enquanto eu sorria para o António, como quando me disse que "a vida é demasiado curta para procurar as meias da mesma nação" porque eu estava descalça e a usar um par de meias diferentes. Não sei, as coisas fluíram tão naturalmente.
Parece que estou apegada a estas coisas, a estas memórias. Quando eu fui para o outro lado combinamos que nos íamos "divertir". O que significa que íamos cagar um no outro e se acontecesse alguma coisa nenhum de nós se ía preocupar. Nenhum se preocupou. Nunca tinha retirado da minha vida aqueles quatro meses e mesmo que o primeiro mês tenha sido um constante relembrar do que ele foi, ao fim do quarto mês ele já não importava, estava a viver coisas demasiado importantes. Se eu tivesse conhecido alguém relevante ou me tivessem oferecido emprego, eu tinha ficado. Hoje é me quase indiferente, mas continua a ser uma dúvida na minha cabeça. Tería resultado alguma coisa deste caso efémero? Nunca quis realmente que tivesse resultado alguma coisa dali, mas gostava do thrill of it. Orgulho-me deste Verão. Gosto das memórias que me trouxe, mas sei que viver de memórias é algo que não faço, nem posso fazer. Gosto muito de quem sou, da minha vida e não tinha mudado nada. Até gosto do facto das coisas terem ficado no ar, na verdade gosto bastante, uma vez que dota os acontecimentos de místicismo, torna-me um D. Sebastião. E deixa-me desaparecer facilmente, como se nada nunca tivesse acontecido. Mas aconteceu. E eu adoro ser uma imagem incerta, nunca lhe tinha achado piada se fosse dado como certo. Não o quero para nada.
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