Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é
mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das
viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente
do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim,
não está, para mim, em parte alguma.
(...)
Condillac começa o seu livro célebre, "Por mais alto que subamos e mais
baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações". Nunca
desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela
imaginação sensível de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que nós
mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as vemos como elas
verdadeiramente são, que é como foram criadas.
(...)
Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo.
(...)
Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar.
Bernardo Soares in Livro do Desassossego
Ao longo dos dias, deixo as pálpebras juntas na total escuridão que me permite o cerrar do meu próprio olhar, gosto do negro para me recolocar naquelas praias paradisíacas algures na Costa do Índico. Lembro-me das cores, da sensação do ar quente na minha pele, da temperatura agradável e da clareza da água. Vejo, sem ver, os meus pés na farinha branca e fina que aquela terra tem como areia.
Parte de mim lá ficou, a outra parte, aquela que regressou, deseja lá voltar.
Porém a questão que mais tenho feito a mim própria paira no meu pensamento - precisei mesmo de sair daqui para me libertar?
Não. Não estou livre de mim mesma, nem nunca estarei. Achei que estava a fugir de alguém, porém, estava na verdade a tentar fugir de mim própria, tentar apagar memórias utilizando e criando memórias novas. Não me livro de mim mesma. Não mudou essa imagem (a do Eu) porque eu não mudei, nunca mudará. Portanto, não, não precisava de ter ido.
Todos os sítios onde estive, não passaram de associações a locais onde já estive outrora - a praia 2.0 da minha praia, o mar 2.0 do meu mar, as falésias 2.0 das minhas falésias... Ainda que 2.0 seja a versão melhorada, pressupõe a existência prévia de uma versão anterior, a versão que eu assumo como realidade absoluta, chamemos-lhe a 1.0. A 1.0 é a primeira versão, a raíz, o primeiro rascunho, a grande valorização. A primeira versão é aquela que me faz associar a palavra à imagem e à sensação, a palavra à minha realidade. Porque o Meu Mar, será sempre mar frio, nunca mar quente. Não poderia um nativo da Tailândia dizer que mar para ele é frio. Mas o meu mar, Mar a sério, é frio, às vezes gelado e nele custa sempre entrar.
Estou portanto presa. Presa a mim própria, presa à imagem prévia, à associação que criou a minha inteligência e que tem vindo a construir quem sou. Não me livro de mim. Tudo o que vi, só eu vi e mais ninguém poderá ter visto. A Beatriz não viu o que eu vi, mesmo estando sempre ao meu lado. Também não sei o que viu ela. E mesmo que vos tentasse explicar o que vi e o que senti, por mais minuciosa que fosse a minha descrição, vocês sentir-se-iam perdidos, presos à vossa própria associação. Como se vos estivesse a obrigar a ver uma cor que nunca viram. É inimaginável. Porquê? Porque não existe no vosso espectro, e se existe, vocês já se deram ao trabalho de a ver com os vossos próprios olhos e nunca a veriam com os meus.
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